A mulher casada ainda é uma mulher que deseja

Monique Bonomini
3 min readFeb 27, 2023

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Imagem de Foundry Co por Pixabay

Muito antes de Flaubert (Madame Bovary, 1856) e Tolstói (Anna Karenina, 1877), uma escritora escreveu sobre o desejo sufocado imposto à mulher casada. Foi Madame de Lafayette, que em 1678 escreveu o romance, A princesa de Clèves, e um enredo que se repetiria ainda muitas vezes na literatura: moça jovem e bem-educada casa-se por conveniência e depois de algum tempo levando uma vida pacata e confortável, descobre o desejo sexual por outro homem, o que pode colocar tudo a perder, impondo a ela o dilema da confissão ao marido de seu desejo proibido.

De acordo com Léo Schlafman, que assina a Introdução na edição da Coleção Mulheres na Literatura, da Folha de São Paulo, “Naquela época o romance, gênero ainda incipiente, era considerado arte menor — diante do teatro e da poesia, por exemplo.” E segue, referindo ao tipo de comentário recebido dos leitores da época: “um homem é mais feliz de ser traído sem saber do que ser o confidente de uma mulher que o trai da forma mais virtuosa do mundo.”, seria essa forma de pensar ultrapassada ou ainda bastante atual?

Na série espanhola, Machos Alfa, disponível na Netflix, Raul, um homem na casa dos quarenta, dono de um restaurante, vive com sua namorada, a advogada Luz. Ele a trai cotidianamente com uma outra mulher que também tem um relacionamento, e no entanto, as coisas mudam quando Luz, de quarenta e três anos, propõe a ele um relacionamento aberto, para que tenham outras experiências que não limitem sua vida sexual, ao que ele reage, divertida e curiosamente, mal!

Os amigos dizem para ele que isso seria ótimo, pois ele teria licença para a seguir traindo, livre da preocupação de que ela o descubra ou se ofenda, porém não é assim que Raul enxerga, já que ele também precisará, colocando em termos machistas, dividi-la, como se ela se trata-se de algo e não de alguém.

Num post, Carla Guerson, escritora que admiro demais e que posso chamar de amiga, graças ao Coletivo Escreviventes, dividiu publicamente uma lição de sua mãe, que ela leva pra vida: “sustentar o desejo”. Eu achei isso tão revolucionário, porque desejar é persistir na vontade, é olhar e dizer eu quero, é sustentar a expectativa de alcançar, um valor que a sociedade patriarcal reprime nas mulheres, que são mais ensinadas a aceitar.

Para os homens, criados muitas vezes para objetificar as mulheres, nem sempre a ideia de erotismo está clara, tanto que ao mostrar para um homem uma coleção de textos eróticos escritos por mulheres, ele se surpreendeu por ver tão pouco falo representando nas narrativas, muitas vezes os desejos das mulheres são de outra ordem.

Num casal, de qualquer tipo, parece indispensável que se mantenham rituais de manifestação de desejo pelo outro, e sobretudo pelo que a literatura mostra, a mulher casada ainda é uma mulher que deseja. Então, manter-se desejante numa relação, para além do ato sexual, é uma potência que renova o sentimento que os levou a ficarem juntos e os distingue de uma mera amizade ou parceria.

Se você gostou deste texto, talvez goste do conto Talvez jazz, talvez bossa, que pode ser ouvido no meu podcast, Abismos para evitar ruínas.

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.