Do que é feita uma casa?

Monique Bonomini
3 min readFeb 13, 2023
Imagem de Peter H por Pixabay

Júlio Cortázar, escritor argentino, escreveu um conto chamado A casa tomada, que narra a história de dois irmãos que herdaram uma propriedade e desenvolveram com ela uma relação quase simbiótica. O conto traz a descrição dos cômodos usados por cada um, dos que demandavam mais tempo de limpeza, dos que eram de uso comum e como os dois personagens viviam neste ambiente até que uma situação inesperada rompe a harmonia e os impede de permanecer na habitação.

Na infância tive uma relação muito íntima com minha casa, conhecia bem seus esconderijos, por exemplo, o vão no muro onde meu pé 32 entrava perfeitamente, dando acesso às escondidas à laje, onde eu passava algumas horas, anônima. Um canto em forma de L, na parte de trás do terreno, que me escondeu da minha mãe num dia em que, revoltada, me escondi e arranquei todas as casquinhas das feridas da catapora, para confrontá-la. E o porão, que não era bem um porão, mas um vão livre debaixo da casa, elevada para alinhar a construção ao terreno íngreme. Neste espaço, onde um adulto só conseguia andar de gatinhas, eu, pequena, cabia sentada e passava dias inteiros, como a Marcela em seu escritório, a Marcela em seu apartamento, a Marcela com seus livros, que na verdade eram imensas listas telefônicas, e outras aventuras.

Marguerite Duras, em seu texto Escrever, para o livro homônimo lançado em 2021 pela Relicário Edições, discorre como sua casa foi imprescindível para sua escrita, ela abre o texto afirmando: “É numa casa que a gente se sente só.” e em seguida “Em casa, porém, ficamos tão sós que às vezes nos perdemos.”, e remonta a um tempo em que ela precisou construir uma certa solidão para dar espaço aos livros que precisava escrever, não uma solidão pela falta de amigos, mas uma solidão de um espaço privado, um lugar para existir sem disfarces ou protocolos, andar de roupa ou sem, um depósito de memórias e coisas que só fizessem sentido para os moradores, sua casa foi o templo do seu ofício.

Mas, uma casa pode ser um pesadelo, pode ser um símbolo do que não se tem, do que falta, pelo menos é assim que eu leio a descrição do barraco de Carolina Maria de Jesus, em seu Quarto de despejo, abrigo de seus cadernos e de suas agruras, de onde ela saiu assim que pôde, embora ele a tenha acompanhado para sempre, afinal serviu de título e cenário para sua obra mais reconhecida.

Uma amiga, Céu Passos, escreveu um conto intitulado, A pequena grande casa, em que uma mulher decide visitar sua casa de infância quando descobre que ela foi colocada à venda, no entanto, chegando ao imóvel, a mulher dá-se conta de que talvez aquela casa não seja a mesma de que se lembrava, e com pesar ela parte, aceitando que aquela materialidade do seu passado já não existe.

A literatura está cheia de casas, seja como personagens, seja como cenário, e mesmo como metáfora para o corpo, que se distancia cada vez mais do sentido de vaso ou recipiente de algo etéreo para aproximar-se ao de abrigo dos nossos sentimentos, sensações e pensamentos.

Então, do que é feita uma casa? Será que do vidro trincado na janela cozinha depois da bolada da criança, que há anos pede reparo, mas que remete ao evento que lhe deu origem, toda vez que alguém repara na falha? Do terreno baldio, agora livre do barraco de tapume que abrigou um sobrevivente da miséria e foi derrubado para em breve dar lugar à um shopping? Da memória, talvez de um lugar para onde jamais se voltou, após a partida compulsória numa briga com os pais? Ou da carne e osso que um dia se desmanchará para ser o pó de onde surgiu?

Se você gosta de histórias de casas ou mesmo se tem alguma história com uma, talvez goste do episódio 1 do meu podcast, Abrigos para evitar Ruínas, em que narro o meu conto Baú de Memórias. Clique e ouça!

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.