Eu cuido da sua vida

Monique Bonomini
3 min readApr 5, 2023

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Imagem de Nátan Rusnok por Pixabay

Uma vez uma conhecida me cobrou na rua: “você posta pouca foto das crianças, nem sei como está sua mais velha”, outra vez, uma desconhecida, alguém que conhece alguém que eu conheço, achou que seria legal compartilhar uma foto da minha filha na página dela, sem qualquer pedido de autorização. E, teve uma vez ainda, que me disseram: “mas você viajou? quando, que eu não vi nenhuma foto?”, e eu fiquei me perguntando, que tipo de interação estamos estabelecendo nesta era digital? A quem interessa acompanhar a minha vida e porque eu me interesso tanto pela vida de quem não faz diferença nenhuma no meu cotidiano?

No livro, O veneno da madrugada, Gabriel García Márquez, escreve sobre um povoado atormentado por uma série de panfletos pregados às portas dos moradores durante a madrugada sem remetente. Eles trazem em seu conteúdo todo tipo de revelação: “sua esposa o trai”, “está devendo”, “denunciou ao partido”, e assim por diante. Sempre se trata de uma verdade conhecida, mas é o fato desta verdade se tornar pública que atormenta quem amanhece com o panfleto pregado na porta de entrada.

O sentimento de todos contra todos passa então a acirrar os ânimos, já bastante à flor da pele pelas disputas políticas, religiosas e de costumes na região. Quem prega os panfletos e com que intenção é o que tentamos descobrir à medida que o livro se descortina.

Muita gente que mora em grandes cidades revela, vez ou outra, um desejo de partir para o interior, invocando as paisagens bucólicas que celebram a vida campestre e as delícias e a calmaria da vida rural.

No entanto, ser anônimo é uma regra que se inverte nos lugares pacatos, onde não há anonimato que sobreviva a única praça que concentra uma verdadeira central de informação quanto a tudo de novidade que possa haver num lugarejo pouco habitado, e qualquer minúscula alteração vira acontecimento.

Quem elabora isso de forma brilhante é José J. Veiga, no livro, A hora dos ruminantes. A história conta de quando a pequena Manarairema se abala com a chegada de um acampamento de forasteiros no entorno que não dizem a que vieram, apenas vão se assentando à despeito da comunidade local, o que desorganiza a rotina da cidade que se coloca em permanente estado de vigilância na tentativa de descobrir: primeiro de quem se tratam e depois porque não se misturam, tanta curiosidade acaba custando caro para alguns.

Moradores do interior podem ser muito amistosos, mas de um “de onde você é?” para um “tá com visita em casa?”, pode ser um pulo e, um pouco assustador para quem está acostumado com alguma privacidade, porém, nos dias de hoje, há privacidade com tanta autopromoção? J. Veiga diz numa passagem do livro, “notícia não é artigo que se esgota com a procura”.

No mundo das redes sociais cuidar da vida alheia é quase um favor, pessoas que sequer conhecemos pessoalmente descrevem cotidianamente todos os pormenores das suas rotinas: sabemos com o que trabalham, vemos o que almoçam, acompanhamos a balada do final de semana, palpitamos na roupa que experimentou na última visita ao shopping e sabemos em tempo real o quanto se exercitou, tudo ali oferecido de boa vontade à curiosidade alheia, apenas esperando um like.

Se pelos interiores, a vida alheia é investigada, no mundo virtual expor a vida privada é quase regra, mesmo que seja uma vida sem graça, ainda que pareça que ninguém está olhando. Alguns estudos afirmam que quem se expõe nas redes tende a ser mais disponível para relações interpessoais fora delas, seria nossa nova maneira de dizer que estamos disponíveis para amizades, que estejam além do seguir de volta? Ou apenas alimentamos esse desejo esquisito de que cuidem das nossas vidas para que possamos desfrutar, ssem culpa, da vida alheia?

Meu conto, Às favas com o boa vizinhança, aborda o tema da privacidade, para ouvir acesse meu podcast Abismos para evitar ruínas.

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.