Morrer não dói

Monique Bonomini
4 min readApr 11, 2023

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“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”

Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida

Quando meu pai morreu eu tinha oito anos e só dei por sua falta uma semana depois. Minha irmã inventou alguma coisa sobre ele ter ido pro céu preparar nossa casa e eu aceitei, a saudade apareceu à medida que cresci, eu não sabia do que sentia falta, até que ele virou uma lembrança, algo que eu tive, mas não tinha mais.

O luto é dos vivos, o sentimento de perda é de quem permanece, choramos porque não teremos mais, lamentamos porque aquela pessoa que conhecíamos já não é, nunca mais será. Fica o vazio, o silêncio, o espaço, precisamos elaborar o luto para nós mesmos, não é sobre quem morre, é mais sobre o que morre com quem morreu.

A morte de Ivan Ilitch de Lev Tolstói, é um livro que mexeu comigo de uma maneira muito estranha, a novela conta de um homem que amarga uma dor terrível, sucumbindo a ela aos poucos. Enquanto a angústia por essa dor sem nome e essa doença sem diagnóstico o faz definhar, também se transforma a forma como ele enxerga a vida. Durante a leitura eu só queria que o tormento acabasse, de modo que a morte foi quase uma recompensa, se para o protagonista ou para o leitor é que eu não sei dizer.

Quando a bisavó da minha filha morreu, fiz o possível para que ela entendesse o que estava acontecendo, nada de céu, nem de moradas futuras, ela morreu, fim. De fato, eu estava do lado da bisa quando ela deu o último suspiro, estava segurando a sua mão no exato momento do fim, foi triste, mas foi tranquilo, ela tragou o ar por umas duas vezes e acabou. Eu encostei na barriga dela e não tinha nenhum movimento, chamei minha sogra que estava sentada sob a janela e disse: acho que acabou. Deixei o quarto para ela, a irmã e os netos darem o último adeus e saí em busca da minha filha: Alice, a bibi morreu.

Ela tinha oito anos então, como eu, na época do meu primeiro contato com a finitude das pessoas, eu não sei se fiz o melhor, mas fiz o que eu gostaria que tivessem feito comigo, não prolonguei a dor, não alimentei uma esperança duvidosa, não floreei o acontecimento. Morreu, porque morremos todos, afinal. É um fato, nos faz valorizar a vida e seus minúsculos momentos, nos lembra de que não somos imortais nem invencíveis. Talvez seja bom morrer, dizem que os deuses gregos eram fascinados pela humanidade justamente por sua finitude.

Morrer não sei se dói, viver sim. É estando vivos que experienciamos a doença, o sofrimento, o suplício, a angústia. Viver dói todo dia, porque mesmo a felicidade não é um estado permanente, acho que morrer não dói. Morrer encerra, encurta, põe fim, abrevia, acaba, interrompe, mas doer, se pensar bem, não dói, estar morrendo talvez doa, mas muita gente diz que quem morre descansa.

A morte esteve muito presente nos últimos tempos, de tudo que eu pensei ver e viver nesta vida, certamente uma pandemia não estava no pacote, mas eu tive muito mais medo de morrer pelos meus filhos, que ainda são pequenos, do que por mim mesma, embora isso não devesse me incomodar, essa possibilidade dos meus filhos sobreviverem sem mim, afinal eu sobrevivi sem meu pai.

Perder um pai é se situar em um lugar onde o pior já aconteceu.”, escreveu Tatiana Lazzarotto no seu livro Quando as árvores morrem. Ao ler isso, de certa forma, nomeei minha forma de encarar este momento tão banal e corriqueiro, e ainda assim tão marcante para uma existência, entendi que não é a morte, mas a perda do referencial que desorienta os vivos, então se pensar bem mesmo, morrer não dói.

Há muitas maneiras de encarar o fim da vida, uma delas está no conto O bolero, que pode ser ouvido no meu podcast Abismos para evitar ruínas, para ouvir é só clicar.

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.