O programado é você

Monique Bonomini
4 min readMar 14, 2023

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Imagem de Michael Schwarzenberger por Pixabay

“A modernidade agora vai durar pra sempre, dizem
Toda a tecnologia
Só pra criar fantasia”

Arnaldo Antunes, Dizem

Não é de hoje que a humanidade se deslumbra na mesma proporção em que se assusta com a tecnologia. Na literatura são as obras de ficção científica que mais exploram a relação do homem com os avanços tecnológicos, no entanto, ainda não encontrei livro que aborde melhor o tema do que A caverna, de José Saramago.

A obra dialoga com O Mito da Caverna, em que o filósofo grego Platão, conta de homens presos numa caverna, de frente para uma fogueira e de costas para a entrada, condenados a verem nas sombras projetadas na parede os espectros do mundo que acontece lá fora. Assombrados pelas formas terríveis, os homens temem sair da caverna até que um se liberta, determinado a conhecer a realidade, que ao final lhe parece bem menos assombrosa do que a projetada. Ao voltar para contar o que viu, os que seguem aprisionados pelas imagens, se recusam a acreditar no que ele diz.

Na história de Saramago, a caverna está no Centro, um condomínio com tudo que há de mais moderno e que escolhe seus moradores a dedo, oferecendo um mundo de conforto e opções de lazer e comércio sem que nunca eles precisem abandoná-lo. Numa entrevista sobre o livro o autor disse: “Nós nunca vivemos tanto na caverna do Platão, como hoje (…) Estamos no mundo em que chamamos de o mundo do audiovisual. Nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna do Platão. Olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade.”

Enquanto isso no conto, O que sonham as pílulas, da escritora Aline Valek, a protagonista Leona usa pílulas antes de dormir. Porém, o que tais pílulas carregam em seus componentes onírico-farmacêuticos, é o poder de fabricar sonhos. Para cada noite ela pode decidir com o que vai sonhar, no entanto, não importa o cenário ou enredo escolhido, de alguma maneira ela acaba sempre acaba voltando ao lugar e com as pessoas de que trazem à tona traumas não resolvidos. Leona podia comprar um sonho sobre fim do mundo ou sobre um dia entre os dinossauros, mas nunca se permitiria mergulhar na inconsciência de uma noite sem sonho ou pior, sem o controle do que sonharia.

Na mesma linha, o conto Reset Life, da escritora Mylle Pampuch, nos apresenta Berenice, uma mulher que, cansada da vida, compra um produto revolucionário, um banho, que através de nanopartículas ativadas em contato com a água, promove a renovação celular em níveis jamais experimentados pelos seres humanos. O único problema é que ela não leu bem as instruções antes de mergulhar na perigosa banheira da esperança. Será que um dia existirá alguma fórmula capaz de aliviar os arrependimentos e dores de viver? Quem gostaria de experimentar uma hora em imersão e ter todos os erros de uma vida apagados? É a pergunta que fica com a leitura.

As distrações tecnológicas nos ajudam a fugir da angústia, mas e quando a angústia insiste em se manifestar, qual o remédio? Recentemente a escritora e psiquiatra Natália Timerman, fez uma análise da quantidade de estímulos que possuímos na atualidade e como isso interfere na saúde mental das pessoas, criando uma demanda interminável por remédios que as ajudem a lidarem com tantas possibilidades ao alcance das mãos, ela conclui: “O melhor remédio para a angústia — não podemos esquecer — é senti-la…”

Úrsula K. Le Guin, escritora de ficção científica, afirmou que se engana quem acredita que as histórias do gênero falam sobre o futuro, para ela, em verdade elas narram o presente de quem escreve e do mundo: “Toda ficção é metáfora. Ficção científica é metáfora. O que a separa de formas mais antigas parece ser o uso de novas metáforas, tiradas de alguns grandes dominantes de nossa vida contemporânea — ciência, todas as ciências, entre elas a tecnologia…”

Será que a humanidade está pronta para o futuro? Ou será que o futuro é uma sombra projetada para nos assombrar e evitar que a gente encare o presente? Para onde a tecnologia vai nos levar? Aonde a gente já chegou com a tecnologia? A gente precisa de todas as facilidades tecnológicas que existem ou não? A gente escolhe as tecnologias que usa ou acaba escolhido por elas, nos bancos de dados da vida? Seu smartphone é programado ou o programado é você?

Você consegue pensar como seria viver no Centro, tomar pílulas pra sonhar ou banho pra consertar a vida? Eu tentei imaginar isso no conto O Centro, que narrei para o meu podcast Abismos para evitar ruínas.

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.