Trabalhar para quê?

Monique Bonomini
3 min readApr 18, 2023

--

Imagem de Pexels por Pixabay

Conta a mitologia grega que certa feita, Zeus puniu Apolo e Poseidon a trabalharem na construção das muralhas de Tróia, sob as ordens de um rei humano, logo mortal. A condenação tinha função pedagógica, pois ainda que imortais e poderosos, ambos os deuses teriam que cumprir sua pena por alguns anos, submetendo-se ao poder de um simples homem.

No livro, O teatro do bem e do mal, de Eduardo Galeano, há uma pequena crônica chamada “Um tema para arqueólogos” onde ele diz: “O poder econômico está mais monopolizado do que nunca, mas os países e as pessoas competem no que podem: vamos ver quem oferece mais em troca de menos, vamos ver quem trabalha o dobro em troca da metade.”

E assim a sociedade vai aceitando que toda a riqueza do mundo, econômica ou natural, se concentre em cada vez menos mãos, brigamos por migalhas, e ainda agradecemos e aceitamos elogios, guerreiros que somos. Galeano prossegue: “A liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos no cárcere do medo, que é o cárcere mais cárcere de todos os cárceres. O deus do mercado ameaça e castiga; e bem o sabe qualquer trabalhador, em qualquer lugar. Hoje em dia o medo do desemprego, que os empregadores usam para reduzir seus custos de mão de obra e multiplicar a produtividade, é a mais universal fonte de angústia.”, este livro é de 2002.

Deveria chocar, mas por alguma razão que me escapa, não choca, o panorama que nos aguarda: no futuro vai ter trabalho, mas não vai ter emprego para todo mundo. É que o sistema precário, ou seja, o do trabalho informal, que está altamente difundido, veio para ficar, e já é apontado como “tendência no mercado”, expressão que tomei emprestada da matéria que vi no site de um grande jornal.

A fábula da cigarra e a formiga, muitas vezes, é usada para exaltar quem trabalha com afinco como uma formiga. Poucos se atentam para o fato de que a cigarra, antes de subir para cantar, fica um imenso período embaixo da terra e, quando sobe, seu canto não dura muito mais que algumas semanas e silencia porque ela morre. O trabalho de engordar e crescer, antes de multiplicar, da cigarra é feito às escondidas, sem que ninguém à veja em filas, como vê as formigas, cantar é seu último ato antes de botar os ovos e morrer, mas por alguma razão, mesmo sabendo que todas as espécies contribuem para o equilíbrio natural do planeta, nos acostumamos a julgar a cigarra porque ela canta.

Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, costuma dizer que quando compramos algo não é com dinheiro que pagamos, mas com o tempo de vida que empenhamos para comprar aquilo, já que em diferentes partes do globo se trabalham diferentes cargas para alcançar o mesmo bem. Dentre as ideias de Hanna Arendt, há a de que a humanidade é a única espécie que altera seu meio e cria instrumentos que se tornam condição de sua sobrevivência, é uma conta que não fecha: criamos coisas que são indispensáveis, mas que não temos como pagar.

Na Idade Média, os servos tinham que pagar uma taxa para permanecer no feudo em que trabalhavam para o caso de o patriarca falecer, ou seja, além de dar metade de sua produção e prestar serviços ao senhor feudal (tributos chamados de talha, corveia e banalidades), os vassalos ainda tinham que contornar a morte de seus familiares, pagando um tributo, para seguirem morando, vivendo e trabalhando para seus senhores, é como diz a música: “tantos passos para frente e apenas alguns para trás”.

Trabalhar não é o cerne do problema, não considerar que todo o trabalho é valoroso é; trabalhar cada vez mais por cada vez menos é; há muitos nadando em opulência sem derrubar uma só gota de suor, já passa da hora de reivindicarmos algum equilíbrio nessa balança.

A última aula, conto do episódio 10 do meu podcast Abismos para evitar ruínas, já está no ar.

Se você gostou deste texto pode deixar até 50 palminhas, ajudando a impulsioná-lo para que outras pessoas o leiam.

--

--

Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.