Um mundo sem divisões

Monique Bonomini
5 min readMar 21, 2023

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Imagem de Daniel Waleczek por Pixabay

Diz Mary Carruthers, no livro, A técnica do pensamento, que eu ainda não li inteiro, mas pretendo: “Para criar, para simplesmente pensar, os seres humanos precisam de alguma ferramenta ou máquina mental, e essa ‘máquina’ vive nas intrincadas redes de sua própria memória”.

Eu sempre morei numa pequena cidade na região da grande São Paulo, com parcos 17km² e reduzida população, até pouco tempo ela gozou de ares interioranos. Nos anos 90, as escolas particulares não eram muitas e as que existiam tinham no corpo docente muitos professores da rede pública.

Naquela época, era comum alunos de diferentes classes sociais dividindo o mesmo espaço, eles se sabiam. Eu vi e vivi essa situação de um entre-lugar, eu morava em casa própria, embora minha mãe não conseguisse nos sustentar sem ajuda de familiares depois da morte de meu pai. Eu tenho a pele e olhos claros, mas não tinha condições, nem roupa (grande preocupação da minha adolescência), para frequentar os mesmos ambientes que os mauricinhos e patricinhas da escola frequentavam (a praça e o boliche). Eu almoçava antes de ir para a escola.

No entanto, sempre gostei de observar, e durante o intervalo eu assistia com alguma estranheza o espetáculo dos lugares sociais se desenhando em pleno pátio. Os mais humildes corriam pra fila da merenda, macarronada e bisnaguinha com uma caneca de achocolatado, eram recebidos com vivas. Imediatamente ao lado, na cantina, se amotinavam aqueles que podiam pagar por um salgado e um refrigerante, que a maioria de nós só via em finais de semana ou comemorações.

A turma da merenda se recolhia pelos bancos de alvenaria espalhados perto do palco com suas porções, torcendo para que a D. Geni os deixasse repetir, já a turma da cantina ficava quietinha, de costas pro palco, comendo seus salgados furtivamente, fugindo dos “serrões” e suas descaradas “dá uma mordida?” ou “dá um gole?”.

Às vezes, eu também assistia as mazelas sociais serem usadas como ferramenta de ataque, “sai pra lá, boy”, e os meninos excluíam do jogo aquele que foi pra escola exibindo seu tênis “de marca”. “Nossa, você só tem essa calça?”, a turminha das bem-nascidas humilhava a colega mais esperta da sala que repetia a roupa.

Eu vi mesmo os professores e funcionários da escola fazendo das suas, se o aluno era mediano, mas de família conhecida, amenizavam suas falhas, davam tapinhas nas suas costas e mandavam saudações à família; se um aluno fosse bom, mas viesse de um lugar anônimo, logo os aconselhavam a melhorar suas relações, “porque hoje você não senta ali, ao lado do Ciclano de Tal?”. Eu mesma, boa aluna sem pedigree, fui “parabenizada” numa oportunidade, por minhas novas associações. Ninguém gastava saliva com os medianos filhos de ninguém.

Djamila Ribeiro, em seu Pequeno Manual Antirracista, nos fala da importância de que a branquitude reconheça seus privilégios, e a cito aqui porque falar de desigualdade social no Brasil é falar de racismo: “O conceito de lugar de fala discute justamente o locus social, isto é, de que ponto as pessoas partem para pensar e existir no mundo, de acordo com suas experiências em comum. É isso que permite avaliar quando determinado grupo — dependendo de seu lugar na sociedade — sofre com obstáculos ou é autorizado e favorecido”.

Assisti muitos dos bem-nascidos partirem para cursinhos pré-vestibular pagos, acessando universidades públicas ou simplesmente indo para uma universidade como se aquilo fosse a ordem natural das coisas, para todos. Não era, ainda não é. Aqueles, que como eu, pertencessem à plebe e quisessem ingressar no ensino superior, tinham que trabalhar de dia e estudar à noite pra pagar os estudos, e ainda hoje, às vésperas de completar 40 anos, curto pelas redes sociais alguns colegas de escola se formando, enquanto outros estão bem formados, bem-posicionados, tudo muito bem, como sempre estiveram.

O curioso é que vivendo neste entre-lugar percebo que muitos dos bem-nascidos se orgulham verdadeiramente de terem frequentado a escola pública, mas se esquecem, ou mesmo nunca se questionaram, quanto a divisão cantina/merenda durante o intervalo, e, pelos discursos, alguns parecem nunca terem parado e se perguntado o que essa divisão significava, e bradam meritocracia e altruísmo, sem nunca terem olhado para a carteira ao lado.

O sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra, A sociedade individualizada, levanta o argumento de que o capitalismo se aperfeiçoa e dá hoje a pobreza nova função, para ele, a pobreza é o “outro”, um símbolo extremo que torna os não-pobres obedientes e cada vez mais tolerantes com a precarização do mundo e do modo de vida, desde que isso os mantenha afastados do estado de incerteza em que o “outro” vive, mas ele ensina:

“Quando Deus perguntou a Caim onde estava Abel, Caim replicou, zangado, com outra pergunta: “Sou por acaso o guardião do meu irmão?” O maior filósofo ético do nosso século, Emmanuel Levinas, comentou que dessa pergunta zangada de Caim começou toda a imoralidade. É claro que eu sou o guardião do meu irmão; e sou e permaneço uma pessoa moral enquanto não pergunto por uma razão especial para sê-lo. Quer eu admita, quer, não, sou o guardião do meu irmão porque o bem-estar do meu irmão depende do que eu faço ou do que me abstenho de fazer. E sou uma pessoa moral porque reconheço essa dependência e aceito a responsabilidade que ela implica. No momento em que questiono essa dependência, e peço, como fez Caim, que me deem razões para que eu me preocupe, renuncio à minha responsabilidade e deixo de ser um ser moral. A dependência de meu irmão é o que me faz um ser ético. A dependência e a ética estão juntas, e juntas elas caem.”

O pobre é o outro, mas ele foi um colega de sala, é um irmão, “lamento, mas o que eu posso fazer?” podem dizer alguns, ou então, “eu não tenho culpa, eu mereci”, podem dizer outros, mas não haverá caridade que chegue se o problema da desigualdade social não deixar de ser uma questão além do alcance, para assumirmos que ele é, em verdade, responsabilidade de todos nós.

Tem alguma lembrança parecida da sua época de escola? Viveu alguma situação que marcou seu lugar social? Como você olha pra esse tempo? Minha personagem do conto, Onde será que anda a Delma? pensa sobre isso, confira no meu podcast Abismos para evitar ruínas. Clique e ouça.

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Monique Bonomini

Sou revisora, faço leitura crítica e também escrevo. Ler é um prazer.